Era só apoiar o corpo na vassoura que baixava o filósofo nela.
Morava em área de risco, mas debochava dos vizinhos quando lhe telefonavam alertando-a de tiroteio.
Nunca presenciou nenhum. Só tinha conhecimento pela TV e elucubrava que no dia que tomasse um tiro, aí que não ia ver mesmo. Então não precisava se preocupar. Não deixava de ter razão.
Por vezes reclamava do joanete. Por certo devido ao uso de sapatos herdados – que nem sempre eram seu número – por toda uma vida.
Sentia dor, resmungava e seguia em frente.
Em dias de faxina acordava quatro horas da manhã. Ajeitava a casa, banhava-se, preparava a bagagem – coisa de quem mora longe e não sabe se volta para casa – e saía. Caminhava quatro quilômetros até a praça para pegar a Van que a levaria até o ponto do primeiro ônibus, que a conduziria até o ponto do segundo ônibus, e este sim ao seu destino.
Depois de três horas, chegava ainda com o dia começando a acontecer na casa do patrão. Não antes de comprar o pão saindo do forno na padaria da esquina.
Esfregava, limpava, passava, lavava, torcia e conversava – e como conversava. Se não era com o patrão era com o cachorro mesmo. Falando extravasava, e se não tinha com quem trocar palavra, aproveitava para levar o cachorro na rua, servindo este de motivo para falar com o jornaleiro, verdureiro, camelô, e todos os demais
que estivessem no caminho das necessidades do animal.
De nada se ressentia. Não chamava ninguém de amiga. Mas colegas ela tinha muitas. Estava sempre marcando de sair com alguma. Não que fosse para beber. Dizia que não ia gastar dinheiro com isso. Nem tão pouco para namorar. Não queria ninguém tirando sua liberdade, alegava. Mas de se divertir entendia. Gostava mesmo era de assunto. Tendo assunto estava ótimo para ela.
Não julgava ninguém. Nem se dava ao trabalho, se poupava da fadiga.
Falava sobre tudo e quando não entendia o argumento, escutava. Depois reproduzia com pompa e circunstância.
Não tinha tempo ruim. Sozinha tendo ficado, guardava cuidadosamente o dinheiro de seu suor e viajava todo ano ao exterior. Conhecia melhor o aeroporto do que muito bacana por aí.
A vida para ela era consequência sem causa.
Depois de um dia de trabalho, chegando em casa, jogava longe os sapatos, libertava os dedos do pé, e se estirava no sofá.
Curtia sua prateleira de bugigangas de doação e seu colchão alto adquirido em dez prestações.
Ligava a TV de quarenta e duas polegadas, assistia à novela e dormia o sono dos justos.
Nem se lembrava do joanete.
Dia desses saiu com esta frase:
”Deus dá felicidade para quem quer viver”.
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